A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA – O DIREITO DO CONTRIBUITE DE PLANEJAR A SUA VIDA EMPRESARIAL – MUDANÇA DA INTERPRETAÇÃO AO CONVÊNIO ICMS 52/91

A proteção da confiança no âmbito tributário, uma das faces do princípio da segurança jurídica, apresenta, no aspecto objetivo, a estabilidade das relações jurídicas e, no aspecto subjetivo, a proteção à confiança. Portanto, ao falar em segurança jurídica fala-se num conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos.

O princípio da segurança jurídica está consagrado pelo art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal (CF), segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito”. Recentemente, foi promulgada a Lei n.º 13.655/2018, que incluiu na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro vários artigos inerentes a segurança jurídica, entre eles:

art. 23.  A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.

O Princípio da Segurança Jurídica deve sempre prevalecer, não apenas em favor do Poder Público, como ocorreu no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal-STF, referente a inconstitucionalidade da cobrança do Diferencial de Alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (Difal/ICMS) em repercussão geral (Tema 1093), no qual restou firmada a tese no sentido de que “A cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais”. No entanto, ao modular os efeitos, estabeleceu que a decisão passaria a vigorara a partir de 2022. Segundo o STF, a medida é necessária para evitar insegurança jurídica, em razão da ausência de norma que poderia gerar prejuízos aos Estados.

Cabe frisar que a atividade econômica não é improvisada, e sim planejada e necessita de investimentos. Confiando na redução da base de cálculo constante do CONVÊNIO ICMS 52/91, a qual perduraria como já vinha acontecendo há mais de 30 (trinta) anos,  os industriais  aumentaram seus parques fabris, contrataram funcionários, investiram em marketing, fizeram diversos investimentos em instalações máquinas, enfim, reestruturaram seus negócios e tiveram custos adicionais que não poderiam ser ignorados como se os compromissos empresariais fossem passíveis de descumprimentos unilaterais e inconsequentes ou os projetos de manutenção e de expansão dos negócios privados fossem independentes dos seus recursos financeiros.

No caso concreto, a nova interpretação dada pelo Fisco/RS ao Convênio não só ignorou os investimentos realizados pelo industrial, prejudicando o futuro da empresa, bem como constituiu o crédito tributário referente ao período não atingido pela decadência, deixando, inclusive, de atentar pelo fato de que, tratando-se de ICMS, visto sua natureza jurídica, ocorreu a transferência do respectivo benefício. Cabe salientar que as atividades econômicas privadas são, certamente, um dos mais importantes pressupostos do desenvolvimento social e econômico de qualquer sociedade organizada segundo os padrões democráticos, sendo que a nova interpretação encaminha as relações fiscais para o perigoso destino das arbitrariedades.

O Princípio da Segurança Jurídica deve ensejar maior ponderação na pessoa investida de poderes para aplicar a norma, a fim de procurar estabelecer determinada estabilidade nas relações jurídicas. Dessa forma, evita, com a sua inobservância, o rompimento com as normas anteriores, deixando de conferir-lhe estabilidade, previsibilidade e certeza do direito. Segundo Humberto Ávila[1],“sem segurança de aplicação, a segurança jurídica da norma seria anulada pela insegurança da sua aplicação”.

Geraldo Ataliba[2] pontuava ser a segurança jurídica a essência do próprio Direito. Constituindo mesmo, decorrência do próprio Estado Democrático de Direito, que se estriba nos postulados de certeza e da igualdade.

São albergados pelo princípio da segurança jurídica vários desdobramentos, entre eles:  (i) a proteção da confiança nos atos do Poder Público, os quais deverão ser regidos pela boa-fé e razoabilidade; (ii) a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei nova; e (iii) a previsibilidade dos comportamentos, tanto no sentido geral e abstrato – a proteção da confiança –, quanto no individual e concreto – o resguardo da boa-fé.

Como se vê, a segurança jurídica acaba por desembocar na confiança que as pessoas devem ter nos atos do Poder Público, na conservação de direitos e na previsibilidade dos comportamentos. Na dicção de José Joaquim Gomes Canotilho[3]; verbis:

O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com os componentes subjetivos da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos dos actos.

As regras do Direito Tributário são para tutelar o contribuinte contra as demasias do poder estatal tributante e não para instrumentar as suas investidas (do poder estatal tributante) sobre os patrimônios dos contribuintes. A contenção dos poderes estatais é, aliás, a síntese funcional de todos os institutos que compõem as várias disciplinas do Direito Público.

No caso concreto (Apelação: 70084768290), o Professor Roque Antonio Carrazza, com a clareza que lhe é inerente e com a peculiaridade do maior jurista e doutrinador em matéria de Direito Constitucional Tributário, no Parecer Jurídico elaborado para várias empresas do ramo, referente ao Convênio ICMS 52/91, ao tratar do “O princípio da segurança jurídica e a impossibilidade da mudança, no caso em pauta, do entendimento da Fazenda Pública do Estado do Rio Grande do Sul”, não lhe escapou as considerações em relação ao princípio, verbis excertos:

I- Lembramos, preliminarmente, que o princípio da segurança jurídica se hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito, consagrado já no art. 1º da Constituição Federal, e visa a proteger e preservar as justas expectativas das pessoas. Para tanto, veda a adoção de medidas legislativas, administrativas ou judiciais, capazes de lhes frustrar a confiança que depositam nas normas jurídicas em vigor.

O Direito regula o comportamento das pessoas, para tornar possível a vida social. Tal regulação manifesta-se por meio das normas jurídicas, regras de comportamento que produzem seus efeitos junto às pessoas que vivem num determinado Estado. Estas normas, é claro, não devem ser consideradas isoladamente, mas em conjunto, formando um sistema, um ordenamento jurídico.

O princípio da segurança jurídica ajuda a promover os valores supremos da sociedade, inspirando a edição e a boa aplicação das leis, dos convênios, dos decretos, das portarias, das sentenças, dos atos administrativos etc.

[…]

Com efeito, uma das funções mais relevantes do Direito é “conferir certeza à incerteza das relações sociais” (Alfredo Augusto Becker), subtraindo do campo de atuação do Estado e dos particulares qualquer resquício de arbítrio. Isso dá a todos a chamada “garantia do passado” e, com ela, a tranquilidade necessária para planejar o porvir.

[…]

Portanto, o princípio da segurança jurídica, com seu corolário de proteção da confiança, submete o exercício do poder ao Direito, fazendo com que as pessoas possam prever, com relativa certeza, as consequências que advirão das situações jurídicas a que derem causa.

II- Neste passo, não podemos deixar de mencionar o princípio da boa-fé, que exige que, tanto quanto o particular o Poder Público respeite as conveniências e interesses do outro e não incorra em contradição com sua própria conduta, na qual a outra parte confiava (proibição de venire contra factum próprio).

Cabe registrar, pela sua exemplaridade com o caso, trecho da ementa ao Recurso Especial Nº 1.725.452 – RS – Relatora Ministra REGINA HELENA COSTA, julgado em 08.06.2021, verbis:

[…]

V – A proteção da confiança no âmbito tributário, uma das faces do princípio da segurança jurídica, prestigiado pelo CTN, deve ser homenageada, sob pena de olvidar-se a boa-fé do contribuinte, que aderiu à política fiscal de inclusão social, concebida mediante condições onerosas para o gozo da alíquota zero de tributos. Consistindo na previsibilidade das consequências decorrentes das condutas adotadas pela Administração outro desdobramento da segurança jurídica, configura ato censurável a prematura extinção do regime de alíquota zero, após sua prorrogação para novos exercícios, os quais, somados aos períodos anteriormente concedidos, ultrapassam uma década de ação indutora do comportamento dos agentes econômicos do setor, inclusive dos varejistas, com vista a beneficiar os consumidores de baixa renda.

[…]

Seguindo as normas jurídicas, a jurisprudência e a doutrina a Colenda Segunda Câmara Cível, do Egrégio Tribunal de Justiça (TJ/RS), sob a relatoria da Desembargadora Dra. Laura Louzada Jaccottet, na Apelação: 70084768290 (processo eletrônico), na qual atuei como advogada, representando a empresa, no que tange a alteração de entendimento, pelo Fisco/RS,  com aplicação retroativa, a Câmara deu efetividade ao Princípio da Segurança Jurídica, provendo o recurso.

Prevaleceu a proibição da surpresa tributária, sendo este princípio de ordem moral que veda ao poder tributante desrespeitar o planejamento tributário dos contribuintes, como se a sua atividade produtiva fosse uma coisa improvisada e sem plano prévio, se os seus compromissos fossem passíveis de descumprimentos unilaterais e inconsequentes ou os projetos de manutenção e de expansão dos seus negócios empresariais fossem independentes dos seus recursos financeiros.

Cabe frisar, por imposição do próprio mercado e pela finalidade do Convênio, o benefício havia sido transferido aos adquirentes, sendo este caso um exemplo perfeito de como não deve agir o poder tributante, pois é perceptível a violência que se embute na nova interpretação, após 30 (trinta) anos da sua aplicação, causando enorme surpresa e graves prejuízos aos contribuintes, que acreditaram na política de Governo de produzir máquinas e equipamentos a preços mais acessíveis, com o objetivo estratégico de promover o desenvolvimento da economia gaúcha.

   [1]. Segurança Jurídica (entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário), Malheiros Editores, São Paulo, 2011, p. 142.

   [2]. República e Constituição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, pp. 142-160.

   [3]. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina,

Coimbra, 2000, p. 256.